Não precisa ser abusivo pra ser destrutivo: como a ficção altera nossa percepção sobre relacionamentos
O conceito de mimese – termo filosófico que compreende as ideias de imitação, mímica, representação, e que essencialmente constitui o fundamento da arte, conforme elaborado por Platão e Aristóteles, considera que as representações artísticas seriam meras imitações da realidade. A partir do século XIX, o oposto passa a ser sugerido: a antimimese, defendida especialmente por Oscar Wilde, sugere que a vida é imitativa por natureza, e que, na ânsia de encontrar expressão e significado para a vida em si, é a arte que oferece inspiração suficiente para que a realidade a imite. Pode parecer confuso – mas, independentemente da abordagem filosófica, é fácil perceber a relação simbiótica entre a arte e a realidade; de contos de fadas às novelas, passando até mesmo pelo fato de que Jesus Cristo (figura esta que poderia até, na visão de alguns, ser inteiramente ficcional) lecionava através de parábolas, histórias que não necessariamente ocorreram de verdade, acabam tornando-se um caminho para a forma como nos comportamos em sociedade. Por que, então, ainda produzimos tantos personagens destrutivos? E, pior, por que muitos destes personagens tornam-se tão populares a ponto de tornarem-se uma referência de amor romântico?
É compreensível que, a fim de realizar alguma obra ficcional, seus criadores elaborem não apenas conflitos entre as personagens, bem como os aspectos negativos destas personagens para motivar uma trama. Contudo, especialmente em obras cujo foco está justamente na formação de casais românticos – filmes, romances, peças, novelas, afins – diversas personagens refletem um ideal de amor romântico excessivamente problemático, gerando relações que, mesmo que não sejam inteiramente abusivas, são absolutamente destrutivas. E, justificando o que disse Oscar Wilde a respeito da antimimese, é comum ver que a relação entre os espectadores e a obra torna-se estreita o suficiente para que se faça vista grossa para tais comportamentos destrutivos em prol das belas histórias em torno das personagens. Mesmo diante da geração de problematizadores, alguns personagens escapam do duro julgamento da razão – seja pelo carisma de um ator que lhe dá a vida ou pela mera idealização da antimimese e da expectativa de viver algo semelhante na realidade.
Ícone da televisão dos anos 90, um dos primeiros a passar pela avaliação da problemática de relacionamentos foi o casal 20 do seriado Friends, Ross (David Schwimmer) e Rachel (Jennifer Aniston). O comportamento obsessivo de Ross foi imediatamente apontado como abusivo, e com alguma razão; porém, Friends segue como uma das séries mais vistas em diversas plataformas – sendo parte do catálogo permanente do serviço de streaming Netflix, bem como de diversos canais de TV ao redor do mundo. O romance de Ross e Rachel, apesar de tido como destrutivo, segue como o marco do amor impossível da série, ofuscando os relacionamentos das demais personagens, inclusive o casamento feliz de Monica (Courteney Cox) e Chandler (Matthew Perry). Condutas como a insistência, mascarada de persistência, e o ciúme excessivo, também disfarçado de preocupação genuína com o relacionamento, fazem do romance entre os dois um tanto quanto destrutivo, mas, ainda assim, um ideal a ser alcançado, já que o sentimento entre os personagens acaba justificando toda a problemática.
O Twitter serviu de termômetro para a mais recente novela das 21h da Rede Globo: acelerada, a trama de Segundo Sol evoluiu rapidamente e, após um salto de vários anos, o personagem Ícaro transformou-se de um menininho no exuberante Chay Suede. E enquanto os suspiros on-line não foram poucos, o personagem por ele interpretado bateu a marca de um mês no ar sem ter tido seu comportamento impulsivo, explosivo e controlador devidamente apontado pelo público. Bem construído, o personagem não só tem boas intenções como também uma vasta carga emocional: preocupa-se com a irmã, padece com a falta da mãe, envolve-se com prostituição de luxo, apaixona-se por uma garota de programa – além, é claro, de contar com o carisma, a boa performance e a aparência de Chay Suede. Contudo, mesmo sendo uma enorme força destrutiva, Ícaro raramente é tido como tal, sendo apenas rotulado de filho traumatizado, jovem apaixonado, e, portanto, digno de seus rompantes, mesmo que estes com frequência vitimizem o núcleo de heróis e heroínas da trama. Rosa, interpretada por Letícia Colin, que envolveu-se com Ícaro amorosamente, foi talvez a única capaz de enfrentar o que ela própria considerou abusivo: chamou-o de agressivo e controlador, rebelando-se contra o aspecto destrutivo do relacionamento. A personagem, inclusive, admite a atração que tem pelo ex-namorado, mas envolveu-se com outro rapaz, de temperamento distinto, e sabe apontar as diferenças entre os dois. Os comentários on-line, contudo, nem tanto: Ícaro ainda chama a atenção por seus rompantes, mas estes ainda são amenizados pelos espectadores tanto por seu histórico “bonzinho” quanto pelos belos olhos de Chay Suede.
É a vida que imita a arte ou a arte que imita a vida? Mimese ou antimimese? Ao idealizar relacionamentos ficcionais, é comum que o espectador faça vista grossa para comportamentos destrutivos nesta esfera, relativizando o que, na vida real, talvez fosse difícil de suportar. Seja por conta do carisma ou da própria história passada de um personagem, ou seja por considerarmos que breves episódios de uma conduta questionável – pois na ficção temos apenas uma fração do tempo que estes casais passariam juntos – se justificam por causa de um sentimento maior, é preciso diferenciar o que se vive na ficção do que vivemos na vida real e aprender a reconhecer o que personagens possam ter de errado, mesmo que estes tenham um bom histórico geral. Mostrando que a vida poderia, sim, imitar a arte – e alguém poderia facilmente fingir não ver algo desagradável apenas pelo afã de viver um “amor de cinema”. Afinal de contas, idealizar um episódio de meia hora de um comportamento destrutivo na televisão pode representar uma vida inteira de um relacionamento abusivo na vida real.
— Patricia Wiese