Sobre gostar de ler – e de jogar futebol também
Muitas vezes, o viés inconsciente nos prega peças vexaminosas – e faz com que uma simples notícia seja um acontecimento. Quando, na verdade, não deveria ser. Dia desses, li que na estante de um jovem, Gustavo Scarpa, há obras de autores consagrados pela crítica literária como Franz Kafka e Machado de Assis. O que chamou a atenção é que o moço em questão é jogador de futebol. Aos 25 anos, o chute com precisão e cálculos rápidos para desnortear goleiros adversários são características do camisa 14 do Palmeiras. Então, um jogador de futebol também pode gostar de ler?
Em algumas ocasiões já falei sobre o preconceito; sobre o nosso olhar repleto de julgamentos. Esse é um tema sempre presente nos meus textos, porque estamos sempre analisando comportamentos com base em repertórios que são pouco coerentes. Julgamos as pessoas pelo que elas vestem, como elas falam, pelo trabalho que executam… É humano! E ainda mais humano é ter curiosidade sobre formas de viver diferentes das nossas. Mas, entre um julgamento e outro deve haver um espaço – na minha opinião – para ouvir o outro.
Um jogador de futebol pode sim gostar de ler clássicos da literatura. Inclusive, em entrevista recente ao site Torcedores, ele disse que se prepara mentalmente para os jogos por meio de livros. Em seu perfil no Instagram, publica resenhas divertidas dos livros que está lendo.
Todo mundo gosta de ler
Aos 13 anos, Scarpa deixou claro para o pai, José, a escolha para a vida; aos 16 anos já era profissional do futebol. De outro lado, o incentivo paterno ultrapassou o conselho em se empenhar no esporte: o incentivo era para estudar e ler muito. Criativo na forma de desenvolver o gosto pela leitura nos filhos – Gustavo tem uma irmã, Gabriela –, colocava os desenhos favoritos das crianças na televisão, mas com legendas. De uma forma inventiva, além de inglês, esse pai desenvolveu o gosto pela leitura nos filhos.
Essa frase do Memórias Póstumas, achei muito hilária, do tempo. O livro O Discípulo Radical, do John Stott, muito legal. Ele dá oito características de um cristão que acabam passando desapercebido hoje em dia. O Pequeno Príncipe, muito maneira a história. E a do Steve Jobs, que foi um cara surreal. É um livro gigante, que achei que ia demorar para caramba, e li rapidinho.
(Gustavo Scarpa, citando os livros mais marcantes da vida, para o site Chuteira F.C.).
Scarpa conta, em entrevista para a Folha de S. Paulo, que o primeiro livro a ler foi Tonico e Carniça, de Francisco de Assis e José Resende Filho. Na história, dois garotos lutam contra o preconceito por não terem um lar. De lá para cá, a leitura virou hábito e ele sempre carrega um livro nas viagens com o clube. Na igreja, aprendeu ainda mais a gostar de ler com a Bíblia. Atualmente, lê O Peso da Glória, do autor irlandês Clive Staples Lewis.
Ler mais para ser quem quiser
O que eu “acho” é menos importante do que como eu “ajo” perante o diferente. Um jogador pode, sim, gostar de ler bons livros. Ele pode ser um exímio cantor ou escritor também. Podemos ser o que quisermos. No Renascimento celebrávamos os múltiplos talentos de Leonardo Da Vinci e Michelangelo, por exemplo. Que tal resgatar a valorização das pessoas como seres dotados de múltiplos talentos?
Lu Magalhães, presidente da Primavera Editorial