Adotar crianças com doença crônica ou deficiência: avanço e desafio
*por Maria Salete Abrão
A ampliação da reflexão e da pesquisa sobre o tema da adoção no Brasil por parte de profissionais de várias áreas do conhecimento tem contribuído para que o processo de adotar uma criança seja cercado de informações e cuidados mais eficientes. Inclusive, as recentes alterações na lei nacional da adoção são reflexo desses estudos e pesquisas, mas é necessário ainda muito trabalho para que a adoção se torne cada vez mais, para pais e filhos, um processo com um potencial prognóstico positivo.
Assistimos nessa última semana a mais um avanço importante na cultura relacionada à adoção. A Comissão de Direitos Humanos do Senado aprovou o PLC 83/2013 – que modifica o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) – para estabelecer prioridade na tramitação de processos de adoção em que o adotando for criança ou adolescente com deficiência ou com doença crônica. O relator na CDH, senador Paulo Paim (PT-RS), lembrou que crianças com deficiência ou com doenças crônicas somam cerca de 10% das 80 mil que estão nos abrigos à espera da adoção.
Os números da adoção revelam que um alto contingente de crianças sofre uma espécie de “triagem” que torna mais lenta e muitas vezes mesmo inviabiliza a adoção. Este é mais um desafio para profissionais que se debruçam sobre o tema. O avanço legal é o passo fundamental e deve ser acompanhado – ou deve desencadear muitos outros passos. Defendo que compreender as peculiaridades da adoção traz benefícios para a constituição da subjetividade e pode subsidiar intervenções voltadas a ampliar a perspectiva de saúde nos referidos processos.
Na atualidade, o estatuto da adoção tenta dar conta de um sintoma social: o alto contingente de crianças que, por motivos diversos, em grande parte basicamente relacionados à falta de estrutura ocasionada por fatores socioeconômicos, não pode ser criada por sua família biológica. Essa é uma das pontas do processo de filiação adotiva. Do outro lado estão os pais candidatos a adoção, parte deles motivada com mais frequência por um sintoma que aumenta a sua incidência na atualidade: a infertilidade. Com esses elementos como ponto de partida, as reflexões sobre o tema devem nos encaminhar a respostas que visem encontrar caminhos a partir dessa realidade e não alternativas idealizadas que não levem em conta as dificuldades pelas quais esses pais e esses filhos passaram em sua história de vida.
O tema da adoção nos encaminha para várias questões. Um dos desafios principais que está contido em cada situação de adoção diz respeito aos valores culturais, associados à maternidade e à paternidade, que habitam o imaginário. Na nossa cultura está inscrito no imaginário que a mãe que gera deve ser a mesma mãe que cria. Nas situações de adoção, este elo indissolúvel é rompido. O vínculo simbólico entre pais e filhos adotivos precisa incorporar, portanto, este elemento de difícil superação. Ocorre nas adoções uma passagem, uma mudança de cuidados, mesmo que o adotado seja um recém-nascido. Característica da experiência de adoção, essa peculiaridade não tem um sentido negativo. Implica, no entanto, em um trabalho de elaboração psíquica. Pais e filhos adotivos precisam integrar a experiência vivida e as suas particularidades.
É possível que pais adotivos produzam um outro modelo para o acolhimento e reconhecimento do filho. Para legitimar essa filiação, como foi referido, terão que ter condições que a favoreçam historiar ao invés de rememorar. Isso significa estarem livres para criar um outro sistema de referência, com outros parâmetros. Criar possibilidades a partir da impossibilidade. Isso é o disruptivo e o criador. É preciso criar conceitos a partir da diferença, novo paradigma. Não é tampar buracos de uma teoria falha, mas abrir um furo num sistema teórico gerando a partir dele uma nova dimensão.
Não é igualar, é diferenciar. Não se corrige a fratura, a ruptura produzida pela transferência de cuidados da mãe biológica para outra mãe; é preciso integrá-la, considerá-la, absorvê-la e, sobretudo, poder falar sobre ela, poder gerar a partir dela. Pais adotivos não são iguais a pais biológicos. Não são melhores, nem piores, são diferentes. Para que a adoção transcorra bem, o imprescindível é poder lidar com a diferença.
Para pensar a adoção de crianças portadoras de doenças crônicas é preciso refletir sobre o que nos ensina a Psicanálise. Segundo Winnicott, a mãe identificada com seu filho é capaz de colocar-se no lugar do mesmo e adaptar-se às suas necessidades. Em nome da ilusão de completude com ele é capaz de suspender seus outros interesses no mundo a favor dele, que está colocado na complementação narcísica da mãe.
Freud (1914), no artigo Sobre o Narcisismo: uma introdução, refere-se à atitude afetuosa dos pais como revivescência e reprodução do próprio narcisismo; ao filho são atribuídas as perfeições e ocultadas ou esquecidas as deficiências: (…) sentem-se inclinados a suspender em favor da criança o funcionamento de todas as aquisições culturais que seu próprio narcisismo foi forçado a respeitar e a renovar em nome delas as reivindicações aos privilégios de há muito por eles próprios abandonados (…) ela será mais uma vez realmente o centro e o âmago da criação. Sua majestade, o bebê (p.108).
O nascimento de um filho porta o futuro da linhagem parental. Reconhecer-se no filho sustenta a fantasia dos pais de continuidade e de imortalidade e isso faz o nascimento ser celebrado. Em torno do filho que nasce tece-se, consciente e inconscientemente, uma rede de expectativas e desejos: as marcas fundantes da subjetividade dessa criança, sustentadas nesse vínculo inicial mãe-bebê. Essas afirmações confirmam que para que uma criança se desenvolva satisfatoriamente do ponto de vista psíquico é preciso que seus pais possam se identificar com ela e investi-la narcísicamente. Desse ponto de vista, a doença orgânica crônica coloca um desafio a mais para a elaboração psíquica do lado dos pais que adotam. Sabemos que filho adotivo precisa ser reconhecido como outro que é, originado geneticamente por outros. ‘Outro’, porque viveu seus momentos iniciais de vida com ‘outros’.
Observamos também que sintomas psíquicos que ocorrem em alguns casos de filiação por adoção se originam na falta de espaço que esses indivíduos tiveram para viver essa dimensão de terem uma origem biológica diferente de seus pais. Os sintomas são emblemas da impossibilidade de olhar para as diferenças, para o ‘outro’. Se for garantido esse espaço, o adotivo constrói sua história, incluindo a diferença e podendo falar sobre isso. Acredito que a escuta psicanalítica pode facilitar, viabilizar e por vezes promover transcrições da história, para pais e filhos adotivos, permitindo que resgatem elos perdidos e construam novos elos gerando melhores condições de elaboração das vicissitudes de suas histórias de vida.
O desafio é criar uma história, recheada de metáforas e metonímias, que propõe a compreensão da relação entre adotantes e adotivo por meio de interpretações simbólicas. A revelação da adoção não é só descoberta, mas invenção de uma história. Isso marca sua diferença. Esses são alguns dos aspectos que podem auxiliar o processo da adoção do ponto de vista psíquico. A adoção de crianças com doenças orgânicas crônicas terá que enfrentar os mesmos desafios acima mencionados e além destes o de poder trabalhar a perda narcísica que significa para qualquer pai e mãe a vinda de um filho com alguma limitação. Mas para essa perda como para muitas outras existe o recurso da elaboração do luto pelo filho idealizado e a construção da identificação e do investimento narcísico no filho como ele é concretamente. Isso viabiliza do ponto de vista psíquico a saúde dessa relação.
Em função dos estudos e pesquisas dispomos hoje de informações de várias áreas do conhecimento que podem facilitar esse processo. É fundamental que a informação possa chegar a pais candidatos à adoção e aos profissionais que atuam de forma direta nas várias frentes que estão relacionadas à adoção.
* Maria Salete Abrão, psicóloga formada pela Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP), possui mestrado e doutorado pela Faculdade de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP). A autora é professora do Departamento de Formação em Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, instituição em que se formou psicanalista. Maria Salete integrou o Grupo Acesso – Estudo, Pesquisa e Intervenção em Adoção, também ligado ao Sedes. O contato da autora com a experiência da adoção deu-se ainda durante a adolescência, graças à convivência com uma amiga que era filha adotiva. A ligação com o tema se aprofundou, mais tarde, nas clínicas de saúde escolar da Prefeitura de São Paulo e na experiência clínica, em consultório particular. Em mais de 30 anos de atividade profissional, passou a conhecer de perto questões de quem vive a adoção, seja como filho, seja como pai ou mãe que adota. É autora do livro Construindo vínculo entre pais e filhos adotivos, publicado pela Primavera Editorial.