Menino contra menina: como estereótipos de gênero na infância nos afetam na idade adulta
Foi-se o tempo em que se rabiscava de batom as barrigas das gestantes nos chás de bebê. O ano é 2018, e em meio aos debates sobre fluidez de gênero – não só biológico como social –, mamães e papais agora organizam chás de gender reveal ( “revelação de gênero”) nos quais algum elemento surpresa, seja o recheio de um bolo ou uma enorme caixa com balões, revela aos presentes o sexo do bebê que se espera… através das cores rosa ou azul. Pouco mais tarde, a dicotomia se repete nas roupas e brinquedos: enquanto meninas recebem itens que remetem aos cuidados com o lar ou com a própria estética, meninos já são associados a potenciais carreiras que assumiriam no futuro. Contudo, o que parece algo natural à infância e à forma como tradicionalmente criamos nossos filhos acaba gerando efeitos colaterais graves em nossa sociedade: do wage gap, ou “diferença salarial” baseada em gênero, à ideia de que determinadas carreiras são exclusividade de certos gêneros. Ambos, homens e mulheres, são diretamente prejudicados por tamanho determinismo.
Por meio de dados do aplicativo BusyKid (“criança ocupada”), criado para ajudar os pais a monitorar mesadas de acordo com tarefas executadas pelos filhos, uma dura constatação veio à tona: a famosa diferença salarial entre homens e mulheres começa bem cedo – ainda na infância. Ao designar tarefas domésticas às crianças, é comum que os pais sejam os primeiros a impor a segregação ocupacional, termo acadêmico para como a sociedade vê determinadas funções como “trabalho de homem” e outras como “trabalho de mulher”. Enquanto mulheres recebem, em média, 20% a menos para desempenhar as mesmas funções de um homem, entre as crianças a disparidade é ainda maior: de acordo com o BusyKid, meninos chegam a ganhar duas vezes mais que as meninas pelas tarefas que executam. Esta disparidade não é intencional. Da mesma forma que ainda diferenciamos gêneros por cores, é comum considerarmos meninas muito “frágeis” para determinadas funções. Por consequência, atribuímos a elas uma recompensa menor por serem capazes apenas de tarefas mais fáceis ou mais simples.
Por outro lado, a imposição da imagem do “homem forte” e da ideia de que há coisas específicas para meninos e outras para meninas durante a infância – mesmo que de forma inconsciente por parte dos pais – também afeta diretamente os meninos: aqueles com interesses considerados “incomuns” ou considerados dignos apenas de meninas, como as tarefas domésticas ou o cuidado com bebês e animais de estimação, têm suas escolhas julgadas (e devidamente cerceadas) desde cedo, causando danos à sua moral e à sua autoestima; os que se submetem à associação de sua masculinidade a uma mera demonstração de força, física e moral – e em especial diante das mulheres -–, dão origem ao elemento tóxico e destrutivo da masculinidade em si, perpetuando a imagem opressora dos homens na sociedade e fazendo deles próprios vítimas deste comportamento, uma vez que se sentem forçados a questionar tudo o que é tido como feminino.
O debate sobre igualdade de gênero na infância é necessário para que seja exposta às crianças a ideia de fluidez social dos gêneros: não há nenhuma função ou papel social que seja exclusivo de um único gênero. Mulheres e homens podem ocupar o lugar que desejarem na sociedade, não importando a escolha do que desejarem fazer. Ao mesmo tempo, meninos e meninas precisam ser recompensados de forma igualitária desde o início – e sem distinção de gênero para as tarefas – para que lhes seja incutido que não há diferença entre homens e mulheres quando vivemos em comunidade. Só se pode combater aspectos como o wage gap e a segregação ocupacional através da educação igualitária, que deve começar desde a tenra infância. Afinal de contas, não estamos numa competição de meninos contra meninas; meninos podem sempre usar cor-de-rosa e meninas podem usar azul.
Patricia Wiese