Corpos femininos: por que julgamos tanto o outro?
O que o Carnaval, um procedimento cirúrgico e estrias têm em comum? Não, esta não é mais uma crítica a uma passista com um enorme costeiro de penas e um diminuto tapa-sexo… mas poderia ser. Vamos falar sobre corpos femininos e essa tal mania de querer ser dono do corpo alheio.
Sobre julgamentos: quando julgamos o corpo do outro
Afinal, se há algo que fazemos – e bem – é julgar que corpos femininos são públicos o suficiente para ditarmos o que as mulheres devem fazer consigo mesmas, seja atrás do trio elétrico ou num consultório médico. E isto sequer se trata do permanente debate sobre aborto, em que uma outra vida estaria potencialmente em jogo, mas apenas da relação de um indivíduo com o seu próprio corpo! A pergunta que fica é… mas por quê?
Enquanto no Brasil as foliãs precisavam levar estampado em seus corpos o aviso de que não é não, nos Estados Unidos duas mulheres precisavam vir a público para literalmente explicar-se a respeito de decisões que tomaram a respeito de seus próprios corpos.
Um pouco de história sobre corpos femininos e propriedade
É sabido que, no passado (convenhamos, não tão distante assim), e em sociedades ocidentais inclusive, mulheres eram uma efetiva propriedade masculina; primeiro, uma posse de seus pais, para em seguida tornarem-se posse de seus respectivos maridos.
Àquelas que não conseguiam um novo dono – também conhecido como marido – em um determinado tempo, a sociedade garantia sua devida desaprovação. Contudo, mesmo que o feminismo e o passar do tempo tenham garantido às mulheres diversas liberdades sociais, seus corpos ainda são vistos como propriedade pública.
Não foi por falta de aviso – o alerta anti-assédio foi um dos mais evidentes estandartes do carnaval de 2018. No meio da multidão, porém, a realidade nem sempre arcava com o pedido de respeito: uma puxada de braço aqui, uma cantada grosseira ali, um celular anônimo apontado para a moça de topless acolá.
De posts virais nas redes sociais aos maiores veículos de informação do país, os relatos de assédio, constrangimento e desrespeito marcaram presença em meio aos tamborins. Enquanto algumas mulheres privaram-se de usar determinadas fantasias, de tomar bebidas alcoólicas ou mesmo obrigaram-se a seguir os trios elétricos pelas beiradas, outras contam que só deixavam de passar por situações desagradáveis na devida presença de namorados, maridos, irmãos – efetivamente, um homem que de fato demarcasse aquela mulher como sua posse.
Já na gringa, foi através de uma famosa revista que a atriz e escritora Lena Dunham relatou a verdadeira saga que enfrentara ao escolher realizar uma histerectomia, a retirada completa do útero, aos 31 anos. Das críticas abertas aos olhares de piedade, Dunham contou que todas as reações que recebera – de desconhecidos inclusive – ao contar sua decisão eram, invariavelmente, negativas; uma jovem mulher conscientemente abdicando de sua chance de ser mãe? Isto soou absurdo mesmo que as pessoas soubessem que Dunham enfrenta, há mais de uma década, os sintomas da endometriose, doença que afeta o endométrio, revestimento interno do útero, e que causa dores excruciantes. Um procedimento doloroso poria fim a um futuro potencialmente mais doloroso – então, por quê não fazê-lo de uma vez? A motivação principal do procedimento acabou passando despercebida: as pessoas se viram no direito de observar apenas que ela não poderá mais engravidar sem levar em consideração que ela apenas desejava não sentir mais dor.
Ainda nos EUA, a socialite-empresária-modelo que todos parecem amar odiar – ninguém menos que Kim Kardashian – voltou a fazer comentários sobre um tratamento anti-estrias… e a ser duramente criticada. Depois de duas gestações, Kardashian, como tantas mulheres, acabou ficando com estrias nos seios e em seu famoso derrière, e foi às suas redes sociais relatar sua satisfação com um tratamento que fizeram-nas diminuir significativamente.
A crítica, desta vez, vinha revestida de boa intenção: a função de uma pessoa pública como ela, segundo seus seguidores, seria promover o entendimento das pessoas com seus corpos femininos como eles são, exigindo a aceitação (mesmo que forçada) de sua aparência.
Pois se o objetivo maior do discurso é o de justamente encorajar as pessoas a estarem mais confortáveis em sua própria pele, por quê não incluir o debate de formas saudáveis de fazê-lo? Algumas pessoas podem se incomodar com suas estrias; outras, não – mas se há uma forma de combatê-las sem riscos, por que não? A busca por aceitação da própria aparência é fundamental, mas também deve incluir que podemos mudar determinadas coisas que nos desagradam, e que a importância desta mudança cabe apenas ao próprio indivíduo.
A percepção das mulheres como posse é mais uma etapa da objetificação feminina. Mesmo que tenhamos determinadas liberdades sociais, mulheres ainda devem submeter-se à opinião alheia – inclusive de outras mulheres – porque seus corpos devem estar de acordo com aquilo que a sociedade ainda considera um padrão, seja ele estético, familiar, médico ou comportamental.
Há o julgamento não só do diminuto tapa-sexo da passista, mas do comportamento da moça no bloco de carnaval, de uma decisão médica que comprometeria a maternidade e até mesmo da escolha de remover estrias (e provavelmente da presença destas mesmas estrias se a sua dona escolhesse deixá-las lá).
É hora de dar liberdade para os corpos femininos, todos eles; e que as mulheres decidam o que fazer de seus próprios corpos; quem, afinal, para saber mais de nós mesmas do que… nós mesmas?
Patricia Wiese