Escrevam, mulheres, escrevam
Como o machismo se evidencia no meio literário e o que estamos fazendo para mudar?
De acordo com pesquisa coordenada pela professora Regina Dalcastagnè, mais de 70% dos livros publicados no Brasil entre 2005 e 2014 foram escritos por homens. Por que consideramos este um dado normal?
Proponho retrocedermos dois passos para compreender o processo de formação de identidades. Elas são definidas nas relações sociais, a partir da diferença com o “outro”. Eu sou brasileira porque existe alguém que não é: um argentino, um cubano, um alemão. Por algum motivo, eles são diferentes de mim e isso me permite definir um aspecto da minha identidade. Na cultura ocidental, existe apenas uma identidade “neutra”, a partir da qual são designadas as “diferentes”: a do homem branco cis hetero. Por isso, quando falamos de “respeito à diferença”, pensamos nas mulheres, nos homossexuais, na população negra. Pensamos em tudo que é diferente do homem branco cis hetero, que é identificado como o universal, a própria humanidade.
Que um homem seja escritor ou astronauta, em nada nos espanta. Também não é uma surpresa que, segundo a mesma pesquisa, no mesmo período, eles sejam 256 entre 414 protagonistas nos romances publicados – em que 136 são mulheres brancas e apenas 6 são mulheres negras. “Tomamos como natural que os homens ocupem espaços de liderança; que, na maioria dos prêmios literários, homens sejam juízes e premiados; ou que, nos eventos literários, as mulheres sejam minoria. É uma dinâmica tão naturalizada e estabelecida que a gente não questiona”, afirma Taís Bravo, escritora e fundadora do projeto Mulheres que Escrevem.
Taís é autora do livro “Todos os meus (ex) heróis são machistas” e foi durante alguns anos uma das colaboradoras da Capitolina, revista independente voltada para meninas adolescentes. Nesta experiência, conta ter conhecido muitas mulheres que escreviam, mas não necessariamente se assumiam escritoras. Daí o desejo de fundar o Mulheres que Escrevem, projeto que se pretende uma conversa entre mulheres que já exercem a prática da escrita. Antes da Capitolina, Taís participou de outros grupos em que a maioria dos membros era homem. Nesses espaços, ela “sentia que estava num conflito, tinha que disputar para ser ouvida, estava sendo subjugada”. Algumas práticas do machismo, como o mansplaning, se repetiam. “Se você não tem o contraste, parece que isso é natural”. Foi a partir deste contraste, diz ela, na experiência de troca em grupos de escritoras, que alguns medos e inseguranças que imaginava serem pessoais ficaram evidentes como resultados de processos coletivos, sociais. Eram, na verdade, resultados do machismo.
Pelo menos desde a década de 1980, o protagonismo da produção do conhecimento por atores brancos ocidentais tem sido colocado em questão por intelectuais pós-coloniais, que vão defender o deslocamento deste lugar. Dentro da esfera do conhecimento, inclui-se a literatura, que é uma forma de construção do imaginário coletivo. Por que não existe maior diversidade entre escritores? Por que a maioria das publicações são de autoria de homens brancos?
Ao direcionar nosso olhar para quem produz o conhecimento, a reflexão pós-colonial leva-nos também a considerar as possíveis diferenças nos resultados dessa produção. Há, necessariamente, uma diferença entre a escrita de uma mulher e de um homem? Afinal, em que influencia o “lugar de fala”? Para Taís, não existe uma diferença essencial nos textos, mas existem, sim, diferenças que são produzidas por perspectivas adquiridas pela vivência de um lugar social comum. Uma mulher escreve como uma mulher e isto não torna a escrita feminina homogênea. Não podemos esquecer que “mulher” não é uma categoria universal e que existe uma enorme diversidade de experiências do que é ser “mulher”, em que categorias como raça e classe são transversais. “Essa diversidade se reflete em muitas formas de escrita”, segundo Taís.
Assim como o Mulheres que Escrevem, várias iniciativas nasceram nos últimos anos com o objetivo de incentivar a escrita feminina e a leitura de mulheres – como as hashtags #leiamulheres ou #leiamulheresnegras, por exemplo. Ao defender a priorização da leitura de autoras, muitas somos acusadas de limitar a literatura. Não éramos, no entanto, enquanto líamos apenas homens – afinal, nada há de mais natural que isto. Defender a produção literária feminina é defender a ampliação do conhecimento. Como leitores, só temos a ganhar.
Marília Gonçalves
Jornalista