Os gozos da vida | Como as mulheres vêm afirmando publicamente sua liberdade sexual.[1]
Ser mulher
Ser mulher, vir à luz trazendo a alma talhada
para os gozos da vida, a liberdade e o amor,
tentar da glória a etérea e altívola escalada,
na eterna aspiração de um sonho superior…
Ser mulher, desejar outra alma pura e alada
para poder, com ela, o infinito transpor,
sentir a vida triste, insípida, isolada,
buscar um companheiro e encontrar um Senhor…
Ser mulher, calcular todo o infinito curto
para a larga expansão do desejado surto,
no ascenso espiritual aos perfeitos ideais…
Ser mulher, e oh! atroz, tantálica tristeza!
ficar na vida qual uma águia inerte, presa
nos pesados grilhões dos preceitos sociais!
Nascida em 1893, Gilka Machado é reconhecida como a primeira poeta brasileira a compor versos eróticos. “Quero amor, quero ardência! A ti me exponho. / Verão, sou toda fecundidade! / – O calor me penetra, o Sol me invade (…)”. Católica, casada aos 17 anos e viúva aos 30, Gilka explorou a sexualidade feminina através de uma linguagem integralmente sensorial, usando palavras relacionadas ao universo do sexo. Como mulher negra, teve ainda de lidar com o racismo que associa seu corpo à disponibilidade sexual. Quando tinha apenas 14 anos, venceu seu primeiro concurso literário e foi chamada de “matrona imoral” pela crítica.
Mais de um século após o lançamento do primeiro livro dessa ousada poeta, as mulheres heterossexuais avançaram na possibilidade de expressão e prática da sexualidade. Pelo menos em quantidade. Bloggers, youtubers e instagramers de variada faixa etária se lançam à exposição virtual – mas não só – para falar de seus corpos e de seu prazer. Há dois anos, a publicitária Rayssa Gimenes, de 25, criou o blog Garota Molhada[2]. “Eu tive experiências ruins e fui descobrindo que não eram culpa minha. Resolvi tratar desse assunto porque foi tabu pra mim por muito tempo”, conta. A produtora cultural Jeosanny Kym, de 30 anos, criou em 2014 a personagem Xota-K[3], também com o objetivo de falar de maneira natural sobre sexo. “As pessoas entendem meu trabalho num âmbito mais educativo do que erótico. Meu retorno sempre foi positivo”.
O público mais engajado de Rayssa no Instagram é de mulheres acima dos 35 anos, casadas, com filhos, muitas das quais nunca alcançaram um orgasmo com seus parceiros. Elas respondem aos stories, participam das pesquisas, fazem perguntas e pedidos de temas a serem abordados na página. A jovem afirma que o trabalho também possibilitou a ela “sair da bolha” de meninas que, cada vez mais e mais cedo, atingem uma liberdade e autonomia sexual. “Na época que essas mulheres eram adolescentes, era tudo muito mais reprimido, elas não tinham onde pegar essa informação e foram ensinadas que deveriam satisfazer o homem”. Tanto Rayssa quanto Jeosanny já receberam relatos de mulheres que se masturbaram pela primeira vez depois de conhecer o trabalho que elas fazem.
Para a criadora da Xota-K, a liberdade econômica precisa acompanhar a liberdade sexual que as mulheres vêm conquistando. Em 1923, quando o marido morreu, Gilka Machado enfrentou dificuldades para se manter e sustentar os dois filhos do casal. Sob o estigma de imoral, a poeta viu-se pobre e marginalizada. Ainda em 2018, a dependência financeira, um fator estrutural, dificulta a prática da liberdade feminina. Jeosanny, que mora em Tribobó, São Gonçalo, fugiu a esse padrão. “Eu tenho 30 anos, construí uma casa própria, pago minhas contas. Às vezes eu fico com um cara que ainda mora com a mãe. Ele se depara com uma mulher totalmente livre, vê que não pode interferir nessa liberdade e não aceita”.
Estrutural também é o machismo – e ainda tão forte. Isso faz com que a liberdade das mulheres não encontre extensivamente espaço para ser. Jeosanny nota que é muito difícil uma mulher heterossexual livre encontrar parceria afetiva. “Nós avançamos e eles não acompanharam”. Apesar de isso ser motivo de algum sofrimento, ela afirma que não está disposta a abrir mão do que conquistou pelo projeto de um casamento, “a menos que seja um parceiro que acompanhe a minha liberdade”. Já Rayssa encontrou um companheiro que apoia seu projeto, com quem namora desde o início do blog.
Dois anos antes de sua morte, Gilka escreve nas notas biográficas que antecedem sua última publicação: “Nunca matei, nunca roubei, nem fiz mal ao próximo; nunca bebi, nunca joguei, nunca fumei nem participei de orgias”. Pelos versos que a fizeram ser considerada a melhor poeta do Brasil em 1933 em eleição da revista O Malho, tendo concorrido com Cecília Meireles, Gilka foi julgada até o fim de sua vida, em 1980. Ao menos sabemos que, ainda que permaneçam os preceitos sociais que insistem em limitar a liberdade feminina em toda a sua dimensão, a cada dia uma nova voz afirma que não irá talhar sua alma para “os gozos da vida”.
Marília Gonçalves
Jornalista
[1] Todas as referências aos poemas de Gilka Machado são do livro Poesias Completas (MACHADO, Gilka. Poesias Completas. Rio de Janeiro: Cátedra; Brasília: INL, 1978.)
[2] Link para o canal: https://www.youtube.com/channel/UCZD_i0B9DSxK0dmLZtIuGoA
[3] Link para a página: https://www.facebook.com/xotak69/