Retirando o véu da mulher árabe
* Por Gilberto Abrão
No momento em que alguém diz o substantivo com o qualificativo “mulher árabe” o que vem à mente dos ocidentais? Sejamos sinceros, a qual imagem nos remete? É bem possível que nos venha a imagem de uma mulher coberta com o hijab – um lenço amarrado à cabeça –, acompanhado por um vestido longo com mangas compridas; um vestido folgado para não realçar as linhas do corpo. Ou, mais rígido ainda, uma mulher trajando o niqab, que é totalmente preto e cobre o rosto, deixando aparecer somente os olhos. Para sermos ainda mais radicais, podemos pensar em uma mulher usando a burca, aquele traje que cobre o corpo inteiro, inclusive os olhos, e a mulher enxerga através de uma telinha – vestimenta usada pelas mulheres do Afeganistão, que são muçulmanas, mas não árabes.
Para os ocidentais, esses trajes se tornaram símbolo da submissão e da carência dos direitos básicos. Quando vemos uma fotografia de uma mulher com essas vestimentas, imediatamente pensamos: “Coitadinha! Tem que obedecer cegamente ao marido, não pode estudar, não pode exercer a profissão que deseja, não tem direito a votar, nem a ser votada…” Seria essa mesmo a realidade da mulher árabe? É claro que essa imagem procede se formos à Arábia Saudita, onde as normas são regidas por leis de uma seita islâmica ultraconservadora – os wahabitas – e que, por mais paradoxal que possa parecer, não têm nada a ver com a verdadeira essência do Islã. A mulher que vive lá realmente tem direitos muito limitados. Não vota, nem é votada; só pode exercer certas profissões nas áreas da educação ou medicina (mas só para mulheres); não pode viajar sem estar acompanhada do marido, pai, irmão ou filho. Mas seria a mulher da Arábia Saudita o exemplo preciso da mulher árabe de hoje? Absolutamente não.
A mulher árabe, atualmente, está mais próxima dos ensinamentos do Alcorão do que nunca. Em maior ou maior grau, ela tem liberdade, pode exercer qualquer profissão – desde motorista de taxi até comandante de aviões. Ela pode frequentar as melhores universidades que suas condições financeiras permitirem; pode votar e ser votada. Enfim, as mulheres árabes participam de um amplo leque de atividades profissionais, educacionais, acadêmicas e políticas em seus países. Na Síria e no Líbano, por exemplo, a mulher pode votar e ser votada desde 1947. No Egito, desde 1952; na Tunísia, desde 1956. Quase todos os países árabes têm mulheres em seus congressos.
Espera aí, eu disse “próxima dos ensinamentos do Alcorão”? Sim, porque quando o islamismo surgiu, no início do século VII, veio conferir à mulher da península Arábica um status de liberdade, de direitos, de posição e de prestígio dentro da comunidade, libertando-a da condição inferior que possuía dentro da sociedade tribal em que vivia. Em nenhuma sociedade do mundo da época, isto é, no século VII – inclusive Roma e Grécia –, a mulher chegou a atingir um estágio tão elevado de liberdade, respeitabilidade, direitos e de participação na sociedade como a mulher árabe após o advento do Islã. Entretanto, a sociedade patriarcal árabe não conseguiu quebrar todas as correntes que a prendiam aos hábitos tribais pré-islâmicos. Portanto, muitas coletividades rurais e nômades (beduínos), tinham o islamismo como a religião a ser seguida nos dogmas e práticas, mas as mulheres dessas comunidades permaneciam presas aos velhos costumes da jahilya (ignorância) – como é chamado o período anterior ao advento do Islã.
Dentro da história Islâmica há a participação de várias mulheres que ajudaram a expandir a religião muçulmana – a começar pela primeira esposa do Profeta Mohamed, Khadija bint Khueilid; Fátima, filha do Profeta com Khadija; Zainab bint Ali; Aisha bint Abu Bakr, a última esposa do Profeta que, inclusive, participou de uma guerra contra o Imã Ali, causando um racha político no Islã. Desse racha, surgiram os xiitas, ou seja, os partidários de Ali. Nos séculos que se seguiram foi grande a participação da mulher no tecido social islâmico como cádi – juíza, governante, mestre de jurisprudência islâmica –; no campo da medicina; nas artes da eloquência, poesia e narrativa.
Com a chegada do Império Otomano, a mulher árabe estagnou. Aliás, convém afirmar que os homens também pararam no tempo durante os quase quinhentos anos de domínio otomano. Ninguém, exceto a elite árabe, tinha acesso às escolas e universidades. O ensino disponível à maioria limitava-se ao aprendizado da leitura do Alcorão – uma leitura rude, sem a devida compreensão do que se lia. Foram, então, cinco séculos de escuridão.
As duas guerras mundiais passaram com todos seus efeitos positivos ou negativos e, hoje, a mulher árabe disputa com os homens os bancos das universidades, os cargos acadêmicos, as vagas de médicos nos hospitais; debate jurisprudência islâmica com os sábios, participa ativamente da política e faz revoluções. Sem dúvida, foi formidável a participação das mulheres nas derrubadas de governos da Tunísia, Egito, Líbia e Iêmen. Assim como tem sido extraordinária a participação das mulheres no levante que está havendo no Bahrein e no suporte político que têm dado ao presidente da Síria, Bashar al Assad.
Nos meus dois romances – especialmente em Mohamed, o latoeiro – procuro apresentar a mulher árabe que, embora seja iletrada, briga por seus ideais, pelos sonhos que acalenta; sai de casa e vai à luta, como é o caso de Yemna, irmã do herói da história. Em menor escala, Aqul, que lutava para conquistar uma posição de domínio na esfera familiar e com isso garantir sua segurança financeira e a de sua sobrinha, Kafa. Yemna e Aqul, duas mulheres guerreiras, embora opostas, que viveram no início até a segunda metade do século passado, em uma sociedade rural e primitiva da Síria, durante e após o Império Otomano.
Mas e o véu? O hijab não seria o símbolo da submissão? Elas não são obrigadas a andar “enroladas com aqueles panos”? Não, em absoluto! Só é obrigatório na Arábia Saudita, por razões que já expliquei. Nos demais países árabes, anda de hijab quem quer. Entretanto, devido à islamofobia que grassa no Ocidente, muitas mulheres universitárias, acadêmicas, executivas, profissionais liberais estão aderindo ao hijab. Isso se deve nem tanto à obediência aos dogmas religiosos, mas muito mais como uma orgulhosa afirmação de identidade. Como quem diz, de forma altiva e um tanto arrogante, para todo o mundo ver e ouvir: “Eu sou muçulmana! E daí?”
* Gilberto Abrão
De origem árabe, Gilberto Abrão – autor do livro “Mohamed, o latoeiro”, lançado pela Primavera Editorial em 2009 – foi educado em um bairro simples de Curitiba, habitado por imigrantes poloneses, ucranianos, italianos, alemães e alguns sírio-libaneses. Aos 10 anos foi enviado pelo pai ao Líbano com a missão de aprender o idioma árabe, a cultura e a religião muçulmana. Aos 14 anos voltou ao Brasil e anos depois, em 1962, alistou-se como voluntário das Forças de Emergência das Nações Unidas para guarnecer as fileiras de soldados que atuavam na fronteira entre o Egito e Israel. Por ser fluente em árabe e inglês, permaneceu por 14 meses na Faixa de Gaza. Apaixonado por uma gaúcha, retornou ao Brasil em janeiro de 1965 para lecionar inglês em uma escola de idiomas. No ano seguinte, após obter o licenciamento para abrir uma franquia dessa escola de inglês, migrou para a cidade de Novo Hamburgo (RS). Na década de 1970 colaborou com o jornal Zero Hora, no qual publicava crônicas e contos na coluna Sol e Chuva.