O que eu gostaria que tivessem me contado sobre o feminismo
Escrevo esta carta hoje, aos 30 anos, fantasiando que ela possa de alguma forma chegar a mim mesma no passado. Então, essa é para você, Aninha, com muito amor, e espero que te encontre o mais pequenina possível. Uma carta para essa pequena feminista, eu mesma quando menina, sobre o feminismo e como ele é importante para meninas aprenderem desde cedo, a crescer em um mundo culturalmente machista.
Quero te apresentar a termos como “gaslighting”, “mansplaining” e “sociedade patriarcal”, para que desde cedo você possa entender a importância do feminismo, da organização de mulheres em busca de direitos iguais e das condições dignas de existência feminina. Acredite em mim, saber agora sobre isso vai facilitar muito sua vida lá na frente.
Um pouco da (dura) realidade de ser mulher
Para começar, preciso explicar sobre a sociedade patriarcal na qual você e eu estamos inseridas. No patriarcado, o poder primário é masculino e, não importa o que aconteça, o papel da mulher é sempre colocado como inferior. Ele está em todas as áreas da nossa vida: em casa, no colégio, no trabalho.
Será comum, ao longo dos anos, ver mulheres ganhando menos que os homens em uma mesma função, por exemplo. Você também verá mulheres sendo julgadas por determinados comportamentos, enquanto homens são bem vistos fazendo as mesmas coisas. Namorar demais, beber demais, trabalhar demais, escolher ter filhos ou não… Os julgamentos tão numerosos quanto injustos.
A boa notícia é que as coisas estão mudando agora que você já cresceu um pouco, embora qualquer mudança significativa demore demais para acontecer, ainda mais considerando que as mulheres já estão correndo atrás disso há centenas de anos.
Sobre a importância de falar sobre o feminismo; um pouco de história
Estima-se que, se seguirmos assim, só no ano de 2133 mulheres e homens viverão em condições igualitárias. Viu só como é importante falar isso para você ainda tão pequena?
Digo isso porque em 1791 (228 anos atrás) uma dramaturga e ativista política francesa chamada Marie Gouze (conhecida por Olympe de Gouges) escreveu a Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã, em resposta à Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, que aplicava direitos apenas aos homens.
Nessa época, as mulheres não tinham o direito ao voto, acesso a instituições públicas, liberdade profissional e etc. O documento de Gouges exigia status de completa assimilação jurídica, política e social das mulheres e foi completamente rejeitado. As mulheres francesas só conquistaram direito ao voto em 1945, mais de 150 anos depois. Já a Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã foi republicada em 1986 pela jornalista Benoîte Groult e, atualmente, é considerada a proclamação autêntica dos direitos humanos universais. Portanto, sigamos em frente, pequena feminista, pois ainda há muito a se fazer.
Em 1793, Olympe de Gouges foi julgada como contrarrevolucionária e denunciada como uma mulher “desnaturada”, “perigosa demais”, o que a levou a ser condenada à morte e guilhotinada. Não duvido que na época tenha sido chamada de louca, histérica, maluca e afins. Estas, aliás, são expressões que homens podem usar, até os dias de hoje, para te definir em momentos que querem te convencer que você não está com o domínio da razão, mesmo que você esteja. Isso se chama gaslighting, Aninha. Da mesma forma, eles podem usar essas expressões para definir ex-parceiras. Sempre desconfie. Homens também têm a prática de explicar algo a mulheres de forma condescendente e sem que tenham sido solicitados, o que chamamos de mansplaining. Se acontecer com você, explique de volta: “Não precisa me explicar o que eu já sei”. E, em casos do clássico manterrupting, quando um homem te interrompe e impede que você conclua um argumento, deixe bem claro: “Você está me interrompendo”. Acredito que, ao pontuar esses comportamentos e fazemos notar-se sua existência, ajudamos a reduzi-los.
O machismo está muito enraizado nas pessoas, em homens e mulheres, portanto propor reflexões sobre o feminismo no dia a dia é primordial. Claro, nem sempre as pessoas vão te entender.
Às vezes até mesmo as suas amigas e familiares vão achar que você está sendo chata. Mas não liga, não. Segue em frente.
Sejamos chatas: falemos sobre o feminismo
Agora alguns fatos chocantes. Você sabia que, ao redor do mundo, por ano, 12 milhões de meninas ainda são obrigadas a se casar? E que mais de 955 milhões de meninas e mulheres de até 24 anos não têm acesso a ensino simplesmente por serem como nós?. Louco, não?
Então, te digo que estar ciente dos seus privilégios é essencial na sua caminhada. Nós somos diferentes e cada uma de nós tem seus próprios desafios, uns mais complexos do que outros. Por isso, devemos sempre olhar com empatia a luta de outras mulheres, mesmo que não seja a nossa. O que é fácil para mim, pode não ser para quem está ao meu lado. Não julgue. A “sororidade” é o que pode nos fazer chegar lá mais rápido.
Ah, se eu pudesse te contar tudo isso, pequena feminista!
Ao longo da sua vida, vão tentar te fazer sentir errada pelo seu peso, pela sua aparência. Aos olhos de alguns, você estará gorda demais; magra demais; com muita celulite; com o cabelo muito curto ou muito longo. Por favor, Aninha, não dê ouvidos. Você não precisa de dieta ou de procedimentos estéticos.
Você só precisa se enxergar com carinho. Cuide de você com amor e respeito como eu gostaria de cuidar hoje se pudesse voltar no tempo como essa carta. Isso vai importar muito mais do que um número na balança ou o tamanho da sua calça. Não existe nada mais lindo do que uma mulher feliz.
Inspire-se na frase “lute como uma garota” e jamais se deixe abalar quando falarem que você está fazendo algo como uma “mulherzinha”. Leve isso como um elogio. Defenda suas amigas. Não compactue com fofocas difamatórias. Busque sua independência financeira. Leia livros de autoras mulheres. Saiba se defender. Saiba ser livre. Livre para escolher o seu caminho. Livre para viajar sozinha. Livre para se posicionar. Livre para pisar firme quando for necessário. Livre para dizer não. Pra jogar futebol ou dançar balé. Livre para ser gorda. Livre para ser magra. Livre para amar. Livre para ser a CEO de uma grande empresa. Livre para ser mãe. Ou não. Livre para problematizar quando estiverem fazendo afirmações machistas perto de você. Não tema ser julgada, não tema ser taxada, mais uma vez, de louca. A opinião dos outros não te diz respeito. No fim das contas, você é a pessoa que precisa concordar e ser feliz com as suas.
Se a Aninha dos anos 90 recebesse essa carta, que mágico seria! Mas, para todas as feministas que chegarem a esse texto, pequenas ou não, deixo aqui o que aprendi, hoje, aos 30: é normal se sentir exausta.
É normal se sentir perdida. Principalmente em meio a tantos termos e tantas verdades que precisamos defender todos os dias. Mas, sigo dando um passo de cada vez. Siga também. Você está indo bem. Olhe para trás e orgulhe-se de toda a sua trajetória como mulher. Mesmo que tenha erros pelo caminho, faz parte. Ninguém é perfeito. E posso te contar um segredo? Ainda hoje algumas pessoas acham que feminismo é “mimimi”. Mas nunca acredite nisso. Jamais.
“Mulher, desperta. A força da razão se faz escutar em todo o Universo. Reconhece teus direitos”
– Olympe de Gouges.
Ana Maria Sbardella, jornalista.