Uma conversa sobre consciência negra, com Maria Carol Casati
Por que precisamos falar sobre a consciência negra, você sabe? Neste mês de conscientização, abrimos o espaço do blog para “ouvirmos” uma voz diferente da habitual.
Normalmente, às quartas-feiras, Lu Magalhães escreve sobre assuntos que vão muito além do livro e que falam com todas nós, mulheres. Hoje, para falar sobre a importância da consciência negra, a #ColunadaLu entrevistou Maria Carolina Casati, mulher preta, mãe, feminista e inspiradora.
Maria Carolina é professora e escreve também. Leitora voraz, apaixonada pela palavra, se dedica à pesquisa usando a metodologia da história oral. É idealizadora do @encruzilinhas, um projeto de leitura e debate de textos sobre negritude, gênero, feminismos e militância. Doutoranda da EACH-USP, do Programa de Pós-Graduação em Mudança Social e Participação Política, membro do GEPHOM USP e está atualmente na Itália, realizando parte do seu doutorado por lá.
Entrevista: consciência Negra em pauta
Lu Magalhães: Por que precisamos de uma data para falar da importância da consciência negra?
Maria Carol: Assim como em outras datas, de todos esses grupos que são marginalizados, “minoritarizados”; que têm a sua humanidade deslegitimada constantemente, a gente precisa ainda, infelizmente, de um dia para marcar essa necessidade de falar sobre isso. Mas é claro que não é suficiente; a gente tem uma discussão muito forte ultimamente de que não é só em novembro que nós, ativistas, militantes deveríamos ser chamadas para falar; nem também para falar só sobre racismo, afinal a gente faz outras coisas – e faz o ano inteiro. Acho que talvez, ainda, o dia 20 tenha ficado como um marco para discutir a consciência negra mas, mais importante do que fazer ações na data ou no mês, é importante dizer que produtor de conteúdo, filósofo, professor, pensador, que os pretos, todos precisam pagar conta o ano inteiro –, e temos muita coisa a dizer o ano inteiro também.
Lu Magalhães: A semântica perseguiu a população não branca brasileira carregada pelo preconceito e só perdeu o tom pejorativo na luta dos movimentos sociais de libertação. Para você, existe um termo correto para falarmos? Preto ou negro? Muita gente tem essa dúvida e acho legal ouvir sobre.
Maria Carol: Eu, particularmente entendo que agora o movimento tem se apropriado de outras palavras, tem ressignificado essas palavras, então eu uso a palavra, preto. Eu falo que sou mulher preta, falo de pretos e pretas. Mas concordo com Sueli Carneiro, enquanto discutimos as paletas, se um é mais chocolate amargo ou mais café com leite, a polícia e as políticas públicas sempre sabem quem é branco nesse país. Claro que as palavras têm poder, sim, e não só nomeiam coisas, dão sentido à existência. Precisamos começar a entender o que fazer e como usar as palavras para materializar novos discursos e novas existências. Eu entendo quando surge essa dúvida, mas eu acho que é sempre bom esperar também pra ver como a pessoa se define. Não vejo problema em ser chamada de preta e falar preto para falar de pessoas da minha cor. Tudo vem do significado e das questões que estão por trás. Mas, está, sim, rolando uma nova apropriação desses termos pelo próprio movimento – e eu acho isso lindo.
Lu Magalhães: Muitas vezes falamos algo que não parece racista, mas é. Você pode citar exemplos do que deveríamos extinguir do nosso vocabulário?
Maria Carol: Denegrir, humor negro, mercado negro, da cor do pecado, mulata tipo exportação; criado-mudo… eu acho que todas essas expressões podem ser apagadas. Melhor dizendo, “empretecidas”. Precisamos começar a empretecer nosso vocabulário. Vi esses dias uma discussão sobre isso; uma professora de português falava; “ai, mas não tem a intenção, não é um problema, porque a gente sabe que está associado né, que o branco está associado a luz e o negro às trevas; mas isso não é racismo (…)” – Quando na verdade nada é assim porque é. As coisas só existem na vida e recebem significados que são coletivos, culturais, narrativos, são sócio-históricos discursivos. Então, não é assim porque surgiu uma cor e aí ela se significou como cor clara, esclarecedor ou lúcio; e a cor escura, a trevas. O que a gente precisa entender é que o racismo é tão estrutural, estruturante e arraigado nas falas e existências que o grande problema é justamente esse: tudo que é feio, sujo, criminoso, ameaçador, perigoso, nojento, maligno, diabólico é associado a negro, negritude. E tudo que é limpo, claro, iluminado, belo, está associado a cor branca. É justamente a partir daí, metaforizando cada vez mais as nossas relações, que chegamos nos números de assassinatos e encarceramentos, e tudo mais que acontece nesse país. Porque essas associações não são naturais; são discursivas, culturais.
Lu Magalhães: Liste 5 a 10 mulheres negras que você se inspira, admira e gostaria de espalhar por aí.
Maria Carol: Primeiro tem que ficar minha mãe, né? Ela é uma grande inspiração para mim porque sempre me ensinou a pensar sobre essas questões dessa forma, como essa feminista-preta-radical que às vezes parece que eu sou; e isso mesmo, sou essa pessoa. Além da minha mãe, Marlene Efigênia Casati, minha avó, mãe dela, Zélia Carolina dos Santos. Por quê? Porque foi uma mulher que também nos ensinou o que é trabalhar pelo que você quer quer viver, sendo uma mulher preta nesse país. Na verdade acho que todas as mulheres da minha família, do lado da minha mãe. Minhas tias, Djanira, Lenir e Teresa; minha prima Ledir, todas elas são mulheres pretas muito fortes; são mulheres que me inspiraram e me inspiram diariamente a ser uma pessoa melhor e a lutar pelo que eu quero.
+ Mulheres inspiradoras para celebrar a consciência negra
Maria Carol: Entre as famosas, vou citar talvez as clássicas, que cada vez mais têm segurado na minha mão e me feito pensar sobre tudo isso; elas têm me inspirado de verdade. Para reverenciar a existência dessas mulheres na nossa vida, eu tenho que citar Carolina Maria, Conceição Evaristo, Toni Morrison, Maryse Condé, Chimamanda, Igiaba Scego, Audre Lord, Bell Hooks, Lélia Gonzalez, salve! Salve todas essas que existiram e existem com a gente. Antes e ainda aqui. Ou existem agora, de fato, e possibilitam que a gente se reconheça nessa existência do outro. Como não pensar também na Grada Quilomba, na Oyèrónké Oyěwùmí; nessas mulheres todas… E acho que tenho que pensar nas que não são famosas, como a Miriam Cristina dos Santos, uma preta tão poderosa que até o livro dela está indicado a um prêmio de intelectuais negras. Pensar também na professora Luciana Borges, na Dandara Suburbana, na Carmem Faustino, na Isabela, do Sampa Negra, na Maitê, do Oralituras. Na Ednea Cristina Lopes Araújo, grande amiga, preta, que se constituiu comigo, temos a mesma idade e sou inspirada pela existência dela. Gostaria que todas elas fossem citadas nesse texto porque todas essas pretas seguram na minha mão e me fazem continuar – mesmo sem saber. Que bom que elas estão aqui. Como é importante tê-las à nossa volta, ouvi-las, ver o que fazem. Precisamos falar sobre elas e poder ouvi-las. E que honra é estar ao lado delas.
Lu Magalhães: Representatividade. Diga porque é importante.
Maria Carol: É justamente por isso né. Não sou tão velha, tenho 39 anos, mas poder falar para você muito mais do que 10 mulheres pretas que me inspiram é aquecer o coração; e é poder me ver em lugares que antes eu não me via. Quer dizer, num país em que a maior parte da população é preta e mulher, a gente não se via representada na televisão, nos jornais. E não é que não era representada por não me sentir representada, mas por ter pouquíssimas pessoas negras ali. Acho que é importante a gente saber, crianças e adultos, saber que de verdade podemos ocupar todos os espaços — e devemos ocupar todos os espaços. Como diz outra preta inspiradora, Rosane Borges, a gente está no momento de reivindicar de novo a nossa humanidade. Quando a gente é silenciada, quando nos narram e atribuem significados na gente – que não os nossos, a gente se transforma no que eles querem que a gente seja.
Passamos muito tempo sendo não humanos, sendo hiperssexualizados, sendo animalizados, e chega né! Chega o momento da gente se narrar. E representatividade é muito importante por isso. Porque agora de verdade eu posso mostrar as diversas versões sobre mim mesma.
Falando em inspiração…
Maria Carol: Hoje estou na Itália, fazendo uma etapa do doutorado-sanduíche, entrevistando brasileiras pretas, casadas com italianos. E, como diz Audre, pensando essas existências de um lugar, de uma estrangeira de dentro, porque eu também sou fruto dessa relação e estou pesquisando outras relações que se constituíram dessa forma. E, quando penso em inspiração, acredito que seja um movimento coletivo; nós vamos juntas, inspirando a todas o tempo todo. É isso que eu falo, é isso que me interessa e é sobre isso que quero continuar debruçando sobre, por muito tempo.